domingo, 23 de outubro de 2011

Círio de Nazaré: um dos maiores rituais do mundo.

Círio de Nazaré: um dos maiores rituais do mundo. Entrevista especial com Silvio José de Lima Figueiredo


A 219° Festa do Círio de Nazaré, considerada o Natal dos paraenses, realizada no último domingo, dia 9, contou com cerca de 2,3 milhões de romeiros, que percorreram as principais ruas de Belém do Pará, em homenagem à mãe de Jesus. A capital paraense, a cada segundo domingo de outubro, homenageia Nossa Senhora de Nazaré ou a “Rainha da Amazônia”, na maior procissão católica da América Latina.

“O Círio expressa o aspecto religioso, mas também as expressões culturais que se atrelaram a ele durante sua existência”, afirma o professor e pesquisador Silvio José de Lima Figueiredo, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, a ritualização de todos os períodos do Círio faz com que os participantes do ritual busquem estar presentes em todos esses momentos: “desde os mais sacros, como a ‘descida’ da imagem de Nossa Senhora de seu altar na igreja para um local mais próximo aos fiéis, até os muitos cortejos que saem às ruas: o boi-bumbá pavulagem, o auto do círio, entre outros”.

Também o “almoço do círio” exprime essa condição, já que a maioria busca participar de um almoço desse tipo no domingo do círio. “Além disso, a fabricação e venda de brinquedos de Miriti (uma palmeira), o passeio ao arraial, etc. Mas, apesar de todas essas expressões pouco a pouco ganharem importância, elas não deixam de ser realizadas em função do símbolo do sagrado: Nossa Senhora de Nazaré é a razão da festa”.

Um dos símbolos mais importantes do Círio de Nazaré, depois da imagem da santa, é a corda. E Figueiredo explica o porquê: ela representa a "ligação entre o homem e o sagrado, sem muita mediação: é o corpo oferecido em sacrifício em busca do êxtase”.

Silvio José de Lima Figueiredo é professor e pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará – UFPA. É bacharel em Turismo pela Universidade Federal do Pará, gradua dodo em Administração pela Universidade da Amazônia – Unama, mestre em Planejamento do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Pará e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Pará. Elaborou o documentário "Naza" e é autor do livro "Círio de Nazaré – Festa e Paixão".

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A que atribui a grandiosidade da festa do Círio de Nazaré?

Silvio José de Lima Figueiredo – Existem várias razões para essa grandiosidade. A quantidade de romeiros é uma delas, pois essa festa congrega os habitantes de Belém, mas também os peregrinos provindos das cidades interioranas do estado do Pará e de outros estados da Amazônia. Além disso, Nossa Senhora de Nazaré é uma santa de grandes milagres: a casa própria, o vestibular, a cura de doenças. A fé é intensa e os acordos e trocas com o sagrado são muitos e de diversas formas, pois se manifestam na ação de “pagar a promessa” ou de “agradecimento”, e ultrapassa o catolicismo puro. Pouco a pouco a festa vai tomando a forma atual, com uma série de eventos culturais atratores de turistas regionais e também é quando se permite o uso dos espaços públicos indistintamente pela população, a ocupação das ruas e a sociabilidade. Tudo isso, em forma de espetáculo midiático, faz do Círio um dos maiores rituais mundiais.

IHU On-Line – O que explica, nos dias de hoje, a comoção em torno do Círio de Nazaré?

Silvio José de Lima Figueiredo – Exatamente sua grandiosidade e sua capacidade de aglutinar diversos tipos de pessoas, dos mais crédulos aos menos religiosos. A força da divindade, Nossa Senhora de Nazaré, e a possibilidade de comunhão com o sagrado e de comunhão social.

IHU On-Line – O que os símbolos representam para os fiéis? Depois da imagem de Nossa Senhora, a corda é o elemento mais importante para os romeiros? Por quê?

Silvio José de Lima Figueiredo – Símbolos são importantes em nossa vida o tempo inteiro, e é esse processo que torna o homem um ser cultural. Os símbolos religiosos são atalhos simbólicos para o alcance do sagrado: as imagens dos santos, os rosários, os ex-votos (que representam o pagamento da promessa), entre outros. A corda é o mais importante depois da santa, pois representa a ligação entre o homem e o sagrado, sem muita mediação: é o corpo oferecido em sacrifício em busca do êxtase.

IHU On-Line – Como compreender o mistério que há na corda?

Silvio José de Lima Figueiredo – Talvez somente participando do Círio e “indo” na corda durante a procissão. E assim é possível entender um corpo coletivo, sacrificado, em privação, exatamente no limiar do êxtase, da fadiga corporal, impondo-se no ritual como sendo sua centralidade, e sendo oferecido a Nossa Senhora de Nazaré em pagamento e agradecimento.

IHU On-Line – Com a realização do Círio, não é paradoxal que as pessoas continuem buscando o sagrado tão concretamente, em símbolos como a corda, em um mundo em que os indivíduos estão cada vez mais ligados à tecnologia e aos meios virtuais? O que justifica esse sacrifício todo?

Silvio José de Lima Figueiredo – A busca do sagrado me parece uma característica do ser humano em todos seus momentos históricos e em vários tipos de cultura. Isso não mudará com a chegada de novas tecnologias, pois as religiões se utilizarão dessa tecnologia para continuar funcionado, e a virtualização, ou seja, o potencial não ainda realizado, é bem propício ao campo da crença. Mas é sempre bom fazer a distinção entre religião e sagrado, pois rituais coletivos podem servir ao alcance do sagrado sem serem necessariamente religiosos.

IHU On-Line – Qual a influência que o Círio de Nazaré exerce na vida social da Amazônia?

Silvio José de Lima Figueiredo – O Círio é exemplo de como o catolicismo conseguiu se impor na Amazônia (e também no Brasil e América do Sul). É o resultado de negociações entre varias crenças e dos conflitos vivenciados nesse processo. Suas centralidade e atratividade fazem dele o principal evento cultural e religioso da região. Com menos ou mais influências em outros estados como o Amazonas e o Amapá, indica um marco temporal no calendário e uma propagação das expressões culturais a ele atreladas, como música e gastronomia, além, é claro, de ser central nas resoluções das igrejas católicas da região.

IHU On-Line – O que significa, em sua opinião, a devoção dos fiéis ao Círio de Nazaré?

Silvio José de Lima Figueiredo – Na verdade, a devoção é à Santa, a Nossa Senhora de Nazaré, e significa a força do símbolo em favorecer a relação das pessoas com o sagrado.

IHU On-Line – Por que o Círio de Nazaré pode ser considerado uma manifestação cultural?

Silvio José de Lima Figueiredo – O Círio expressa o aspecto religioso, mas também as expressões culturais que se atrelaram a ele durante sua existência. A ritualização de todos os seus momentos faz com que os participantes do ritual busquem estar presentes em todos esses momentos: desde os mais sacros, como a “descida” da imagem de Nossa Senhora de seu altar na igreja para um local mais próximo aos fiéis, até os muitos cortejos que saem às ruas: o boi-bumbá pavulagem, o auto do círio, entre outros. Também o “almoço do círio” exprime essa condição, já que a maioria busca participar de um almoço desse tipo no domingo do círio. Além disso, a fabricação e venda de brinquedos de Miriti (uma palmeira), o passeio ao arraial, etc. Mas, apesar de todas essas expressões pouco a pouco ganharem importância, elas não deixam de ser realizadas em função do símbolo do sagrado: Nossa Senhora de Nazaré é a razão da festa.

IHU On-Line – Acredita que o Círio está cada ano mais globalizado ou midiatizado? Por quê?

Silvio José de Lima Figueiredo – Parece que tudo hoje em dia está midiatizado, uma ascensão dos faits divers do cotidiano se transformando em atração televisiva e da internet. É claro que rituais tão grandes e complexos como o Círio também passam por esse processo.

IHU On-Line – Qual o papel das comidas típicas durante todo o Círio?

Silvio José de Lima Figueiredo – A atmosfera festiva se dá também ao andar nas ruas de Belém alguns dias antes do círio. A cidade está impregnada dos cheiros da maniçoba e do pato no tucupi. O almoço no domingo é para o fiel que acompanhou o Círio e retorna para sua casa com suas forças esgotadas. E é nesse momento que, com a família reunida, comunga o encontro, a reunião familiar e mais uma etapa do ritual. A reposição das forças, mas também a reunião com a família, amigos, parentes que moram longe e que invariavelmente retornam à cidade para o Círio.

IHU On-Line – A que atribui a emoção dos fiéis durante as procissões?

Silvio José de Lima Figueiredo – A imagem sagrada, em meio a dois milhões de pessoas, é impactante; as graças alcançadas são muitas, e é o momento de pedir, agradecer, pagar, ou simplesmente entrar no corpo coletivo.
Fonte: Unisinos http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=19478&cod_canal=41