Havia uma serpente que não vivia no mato fechado. Preferia o quintal da casa, o chão varrido, o lugar onde todos andavam descalços. Não se mostrava perigosa. Pelo contrário: ficava enroscada ao sol, imóvel, quase decorativa. Quem passava pensava: “Ela não faz mal”. E era justamente aí que morava o risco.
Quando atacava, não era por fome imediata. Era por controle do território. O bote vinha rápido, preciso, e depois a serpente se recolhia, como se nada tivesse acontecido. Se alguém gritava, ela se escondia. Se alguém morria, ela seguia viva. E ainda parecia ofendida quando apontavam o estrago.
Entre humanos, há quem aprenda esse mesmo método.
São pessoas que se apresentam como frágeis. Sempre cansadas, sempre sobrecarregadas, sempre incompreendidas. Se algo dá errado, foi porque deram demais. Se alguém se afasta, é porque foram ingratas. Nunca assumem o bote; apenas exibem a ferida que dizem ter recebido. O veneno, nessas mãos, vem disfarçado de lágrima.
O ataque raramente é direto. Vem em forma de frase solta:
“Depois de tudo o que fiz…”
“Não esperava isso de você…”
“Eu jamais faria isso com quem amo…”
É um silogismo silencioso e cruel:
Quem ama sofre.
Eu sofro.
Logo, quem me causa dor é culpado.
Com essa lógica, a palavra fere, a atitude humilha, o gesto diminui. Mas quem sofre nunca é o outro — é sempre quem fala. O outro apenas reage, adoece, se cala, se afasta. E quando isso acontece, a serpente humana se recolhe no papel que mais conhece: o de vítima abandonada.
Não há gratidão pelo que foi recebido, apenas uma contabilidade eterna do que “foi dado”. Tudo vira moeda. Tudo vira dívida. O amor não liberta; cobra juros. O cuidado não acolhe; vigia. E quem tenta respirar fora desse círculo logo é acusado de frieza, ingratidão, desamor.
A cobra real não finge ser outra coisa. Já essa serpente de gente veste máscaras conforme a ocasião. Na frente de uns, é doçura. Na frente de outros, sacrifício. No íntimo, necessidade de domínio. Alimenta-se não do corpo da presa, mas da culpa que consegue provocar. E com isso se mantém viva, firme, incontestável.
O mais perverso é que o veneno nunca parece veneno. Parece conselho. Parece zelo. Parece preocupação. Só depois, quando a alegria vai murchando e a paz some da casa, é que alguém percebe que foi mordido — e que a ferida não sangra por fora.
A serpente segue no quintal. O humano também. Ambos sobrevivem. Mas deixam atrás de si um rastro invisível de relações quebradas e corações cansados. E há dores que não matam o corpo, mas ensinam, cedo demais, que nem toda presença é abrigo.
O ano termina. As páginas do calendário se fecham, os ciclos se cumprem, o tempo insiste em seguir adiante. Mas nem tudo termina com ele. A serpente continua no quintal, silenciosa, no mesmo lugar. E a gente-serpente também permanece, repetindo gestos, palavras e venenos antigos. Não muda com a virada do ano, não se converte com as ausências que ajudou a criar. Ainda assim, há quem permaneça de pé. Há quem, mesmo ferido, não se deixe transformar em veneno. Há quem enfrente a serpente — e a gente-serpente — sem perder a esperança teimosa de que um dia o quintal será outro, o caminho mais seguro, e que até o veneno, enfim, perderá sua força diante da verdade, do tempo e da vida que insiste em florescer.
Pindamonhangaba, 28 dezembro de 2025.
J. A. Galiani
Pior que é assim mesmo amigo .
ResponderExcluirParabéns .