sábado, 21 de janeiro de 2012

Na Democracia nãohá crime de heresia

Direitos humanos e diversidade religiosa
(A propósito da iniciativa do governo federal de criar o Comitê de Diversidade Religiosa, no âmbito da Secretaria Nacional de Direitos Humanos. O Comitê foi instalado com um seminário em 30 de novembro de 2011)

O Estado laico não discrimina por motivos religiosos, não afirma nem nega, por exemplo, a existência de Deus, relegando essa questão à liberdade de consciência de cada cidadão.
Na democracia não há crime de heresia. O Estado laico assegura que cada cidadão possa viver segundo sua crença, sem receio de ser perseguido por seu pertencimento religioso. Na Constituição Federal (1988), este direito está previsto no artigo 5º, inciso VI, o qual assegura liberdade de consciência e de crença a todos cidadãos, bem como no artigo 19, título I, que veda a aliança entre o Estado e as instituições religiosas. O ambiente democrático fomenta a diversidade, na medida em que todos ficam livres para acreditar (ou não) na existência de Deus.
No Brasil, durante a monarquia, experimentamos outro modo de tratamento para o fenômeno religioso. Nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1707), por exemplo, não se cogitava de liberdade para o indivíduo escolher sua religião. O Livro Primeiro, título II, dispunha "como são obrigados os pais, mestres, amos e senhores, a ensinar, ou fazer ensinar a doutrina cristã, aos filhos, discípulos, criados e escravos", enquanto o Livro Quinto, título I, estabelecia "Que se denunciem ao Santo Oficio os hereges e os suspeitos de heresia ou judaísmo". Assim, privilegiando-se uma religião e perseguindo-se as demais, forjou-se a maioria católica no Brasil.
A memória de um Estado brasileiro confessional e intolerante deve ser preservada, para assegurar que as novas gerações saibam que os valores democráticos, que asseguram o respeito à crença do outro, são conquistas do Estado laico, proclamado por meio do Decreto 119-A, em 07 de janeiro de 1890. A laicidade, definida como o regime de convivência no qual o Estado se legitima pela soberania popular e não mais por algum poder divino, não é contra as religiões. Ao contrário, o Estado laico não discrimina por motivos religiosos, não afirma nem nega, por exemplo, a existência de Deus, relegando essa questão à liberdade de consciência de cada cidadão. A laicidade fomenta, pois, a diversidade religiosa, como inerente a uma sociedade livre e plural.
Importante destacar que o Estado laico serve aos religiosos, pois lhes garante a liberdade para vivenciarem sua fé, inclusive discordando da hierarquia de sua própria Igreja. Assim, por exemplo, as mulheres católicas que desejam usar a pílula, ou os jovens católicos que desejem usar o preservativo, podem fazê-lo graças à laicidade, que lhes garante a liberdade de decidir livremente se vão ou não se submeter aos dogmas de sua própria Igreja.
Contudo, a transição de um monopólio religioso para um regime de liberdades lança desafios à democracia. A ONU (Organização das Nações Unidas), desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) pauta a liberdade religiosa. Mais recentemente, em 1995, aprovou a Declaração de Princípios sobre a Tolerância, enfatizando: "Tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa, fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro". Em 2011, a ONU volta ao tema, aprovando a Resolução 16-18, cujo conteúdo reforça a necessidade de os Estados membros enfrentarem a intolerância religiosa.
Portanto, a iniciativa do governo federal de criar o Comitê de Diversidade Religiosa, no âmbito da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, merece ser festejada por todos que acreditam na democracia, pois demonstra a necessária disposição para o diálogo com os mais variados segmentos da sociedade, visando reconhecer as diferenças, superar a intolerância e promover a diversidade, à luz dos Direitos Humanos.

Roberto Arriada Lorea é Juiz de Direito e Membro do Comitê de Diversidade Religiosa (SEDH)
Autor: Roberto Arriada Lorea*



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