domingo, 10 de janeiro de 2010

Inquietudes! Texto de um grande amigo: Renê Roldan

INQUIETUDES
RENÊ ROLDAN


Participei em um encontro com pessoas amigas e ofereci-lhes um tema, ou melhor, lancei uma pergunta: O que é espiritualidade? Todos deram um parecer que sintetizei assim:
· É estar em sintonia consigo próprio;
· Interiorizar-se;
· União com Deus.
· O eu unido a Deus;
· Medida de minha fé;
· Colocar coisas boas dentro do coração;
· Amadurecimento da religiosidade e crescimento da fé;
· Relação intima da parte material com a parte espiritual;
· Acreditar na presença do espírito;
· Encontro consigo próprio;
· O encontro com Deus. Pessoa e Deus;
· O amor da pessoa.

Após o termino da reunião fiquei remoendo tudo que havíamos conversado e ai quando percebi estava escrevendo as inquietações que aquela pergunta me causou. Deu nisso que transcrevo abaixo.
No meu entender espiritualidade é a ação do Espírito Santo de Deus em nós. Se creio que o Espírito Santo é a força e o vento de Deus que sopra e impulsiona os que Nele crêem, penso que nesse sentido espiritualidade seja o impulso da fé na vida do crente. Tal impulso acontece de dentro para fora, e não ao inverso. O “... vem e siga-Me” proposto ao jovem rico, bem como, o pedido/missão do “ide pelo mundo”... feito aos apóstolos, ambos por Cristo, mobiliza para a ação cristã. Essa ação é transformadora e age igual ao fermento em relação à massa e o sal com o paladar. Tenho o livre arbítrio nessa atitude de fé, que pode ser passiva: louvando, contemplando e adorando, ou ativa com o espírito altruísta de entrega e amor ao próximo a exemplo de Jesus. Acredito que essa segunda atitude foi a que impulsionou e originou ao movimento que veio a chamar-se de cristianismo. Foi esse movimento para fora, sugerido por Jesus através de Mt, 25,31-46, e não aquele institucionalizado, hierarquizado, com uma doutrina rígida e regido por dogmas. Tenho muita dificuldade em aceitar uma “fé” que pede e espera que o milagre aconteça. A esse respeito reproduzo um pequeno trecho tirado da pagina 15 do livro “O Seqüestro da verdade”:...”A fé-fidelidade para com Deus exercita-se e realiza existencialmente, não com ato meramente intelectual, nem com atos cultuais de religiosos, mas com o comportamento total e “social” do homem: o comportamento com Deus se torna realidade no comportamento com o mundo e com a sociedade”. Na medida em que pela fé eu seja fiel com Deus e Sua palavra, meus atos e minha vida testemunharão minha espiritualidade. A espiritualidade passa a funcionar como uma espécie de termômetro da fé: fria, morna ou quente. Faço uso das escrituras sagradas para sugerir três fontes de espiritualidade. A primeira fonte tem origem no exemplo da fé de Abraão quando oferece seu filho em sacrifício; a segunda em Moisés quando da saída do Egito e a famosa travessia do Mar; e a terceira em Jesus, na sua vida, causa e a consequência da cruz. Na primeira fonte imagino Abraão diante de um pedido radical: oferecer em holocausto seu filho e de forma hedionda usando para isso uma fogueira que ele deverá preparar para essa cruel finalidade. É difícil de imaginar tanto de mais acreditar que um ato tão cruel como esse seja arquitetado por Deus. A prova de minha fé na pode ser confirmada em detrimento de outrem. Abraão embora pai não é proprietário do filho, ao contrário é responsável. O filho não lhe pertence, ele é somente o pai, não o gerou e nem sofreu as dores do parto. Só quem passa (e nesse caso é a mãe) sabe quanto um filho representa. O sábio rei Salomão não teve dificuldades para descobrir quem era a verdadeira mãe: exatamente aquela que preferiu perder a guarda a que submeter seu filho ao sacrifício. Mãe sofre, mas não permite que o filho sofra. Não é de graça que o ditado “mãe é mãe” é mundialmente conhecido e repetido. Na segunda fonte de espiritualidade religiosa localizo o povo escravizado que segue as orientações do líder Moisés. Cada um só pensa em si. O eu anula o nós e com isso o individualismo prevalece. Duvida é a bagagem principal, e a cada pedra no caminho o arrependimento de ter saído do lugar onde estava. Afinal “lá pingava, mas não secava”. Critica e lamento são sinais da dependência. Acredita-se somente naquilo que é visível. Arrisca-se pouco, mas cobra-se muito. Quando o mar se abre só entra depois que alguns já foram e mesmo assim fica com um pé atrás durante toda a travessia. Por último, na terceira fonte de espiritualidade, encontro Jesus Cristo na sua causa e a cruz. Suas palavras e práticas incomodavam os poderes político e religioso da época. O motivo primeiro que a cruz Lhe foi conferida aponta para o compromisso com a justiça, a luta contras às estruturas pecaminosas que produziam miséria, bem como, ao tipo de religião conivente, elitista e atrelada ao poder. Dessas três fontes de fé opto pela terceira por entender que o amor a Deus se dá no amor ao próximo, especialmente os mais fracos. O cristianismo sofreu profundos e sérios desvios, notadamente sobre o significado da cruz. Nesse tempo em que vivemos a cruz foi transformada em amuleto, objeto de decoração e enfeite de pescoço, tudo sobre a conivência da “igreja”. Há um momento na liturgia da igreja que muito me entristece. É aquele em que na celebração da paixão, na sexta-feira santa, quando os fieis em resposta a apresentação de Cristo na cruz responde em forma de lamento: “Vinde adoremos”. Esse “adoremos” virou a práxis para muitos fiéis, bem como, extraiu o sentido da vida de Cristo. O cristianismo virou tranqüilizante para a alma enquanto a igreja num balcão de negócios, onde tudo é vendido, até comprovante para dedução no imposto de renda. O Cristo não é aquele condenado e morto no madeiro, mas é light, sereno, lindo de olhos azuis que anda calmamente sobre o mar. O espírito das bem-aventuranças ideário de vida de Cristo deve impulsionar todos que Nele crê. Isso tem preço, riscos, compromete, não é simpático nem bem aceito por muitos, principalmente, por grande parte da sociedade, dos religiosos e da própria cúpula da igreja. Separar a fé da vida dificulta-me em muito na compreensão sobre Deus, Sua razão de ser e existir, razão pelo qual, considero que o amor de uma pessoa que se diz cristão não deve ser egocêntrico do tipo do povo que saiu com Moisés do Egito, nem tampouco aquele que dá daquilo que foi conquistado pela escravidão ou com o sacrifício e suor de outrem, como no caso de Abraão com relação ao seu filho. Quem olha só para si, para os seus e para o céu, pode ser chamado de tudo menos de cristão. Imagino o quanto seria frustrante para João Batista, para Deus (Este é Meu filho amado...), e para o próprio povo, se após toda uma vida de anúncio - denúncia contra as estruturas injustas que marcaram o seu tempo, Jesus após ser batizado voltasse para a oficina da carpintaria no vilarejo de Nazaré, e lá ficasse ajudando José. Conhecer a Deus não deve se limitar ao culto ritualista, mas sim deixar que Deus seja Deus. Embora possa parecer redundante, deixar que Deus seja Deus exige um compromisso radical que implica em buscá-Lo na solidariedade com os “sem nada”, lutando com eles contra as estruturas pecaminosas que produzem exclusões. Uma das mais contundentes profecias sobre a hipocrisia da fé encontra-se no livro do profeta Isaias 58, 1-10. Acredito que em nenhum momento da história da humanidade o nome de Deus foi tão pronunciado e comercializado ao ponto de ser transformado num “produto” altamente rentável. Fatiaram-No tal qual a medicina fez com o corpo humano. Fizeram de Deus um agenciador de empregos e panacéia para todos os males que o próprio homem produz. É assustador o aparecimento de novas igrejas, notadamente aquelas que usam o nome de Cristo. Em meio a toda essa “moda deus’ cresce escandalosamente o abismo entre os poucos detentores da riqueza do planeta em relação aos milhões de miseráveis que molduram o triste cenário de nossas cidades, prova inconteste que não só degrada a Deus como coloca em dúvida própria Sua existência. Na passagem da transfiguração o apóstolo Pedro dirige-se a Cristo, para em seu nome e em nome de Tiago e João fazer uma proposta que deve ter irritado o mestre: “... “Mestre é bom estarmos aqui...”. Tão bom que propôs construir três tendas. Quem não gostaria de lá estar? Muito provável que ao não aceitar tal proposta Cristo quis ensiná-los que a espiritualidade não deve se esgotar no templo/tenda com orações. Não significa que orar não seja importante, pois Cristo também orava. Porem sua oração não era para fugir do cotidiano, mas sim para enfrentá-lo e colocar-se em condições de anunciar e denunciar tudo que impedia e ainda hoje mais ainda impede que a justiça e a paz se abracem no meio dos homens/mulheres, independente de credo, raça ou posição social. Nesse sentido espiritualidade é descer do monte, é sair do conforto do bem bom. Santo Agostinho oferece uma receita de amor a Deus:...”O amor de Deus vem primeiro na ordem do preceito, mas o amor ao irmão vem primeiro na ordem da ação. Consequentemente ama teu próximo e trata de ver dentro de ti mesmo onde nasce esse amor. É ali que encontrarás a Deus na medida do possível. Começa, pois, amando teu próximo, reparte teu pão com o faminto, abre tua casa ao que não tem teto, veste o nu e não desprezes nenhum dos que são de tua própria raça humana”.

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