domingo, 3 de março de 2013

Pedagogia Humanista


CAPÍTULO IV  /  PEDAGOGIA HUMANISTA

O capítulo que iniciamos e os que o antedeceram despontam como uma possibilidade de orientar posicionamentos que visam quebrar paradigmas do pensamento tradicional do que seja o ato de educar.

Em Célestin Freinet, teórico tomado como base de uma proposta pedagógica humana, o ser humano aprende fazendo e faz aprendendo, no espaço em que vive, através das técnicas descritas no capítulo terceiro. Tal entendimento acha-se em consonância com a compreensão do homem como sujeito de seu aprender e isso se dá pelo tato experimental do que aprende com o que quer aprender e, sobretudo, que o aprender e experimentar se processam de forma cooperativa, conjunta.  Tais dimensões balizam condutas educacionais e filosofias da educação como geradoras de espaços de reflexões e práticas, nos quais os alunos de qualquer nível de escolarização, possam abrigar essas possibilidades de ser com os outros, junto às coisas e consigo mesmo.

Esse capítulo reflete a possibilidade de uma proposta pedagógica humana para o século XXI e tem na premissa apresentada por Hannah Arendt, no seu livro Entre o passado e o futuro, publicado em 1954, “[...]a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres humanos nascem para o mundo” (2000, p.223) o principio básico para entender o que nessa monografia se diz por proposta pedagógica humana para o século XXI. Entenda-se como proposta pedagógica humana a educação como prática de inserção das pessoas num dado contexto cultural e histórico.

A natalidade a que se refere Arendt é a que brota do conflito vivido em sociedade, uma vez que esta é uma colcha de retalho de diferentes culturas, e é onde se dá o existir humano. A concepção de uma pedagogia humana, aqui trabalhada, caracteriza-se como a possibilidade de, pela educação, fazer o homem parte do todo, que prima como um ser político e para tal requer uma ética, princípios e valores que norteiem sua reflexão e ação. Essa perspectiva, valorativa de ação e reflexão questiona sem sombra de dúvidas, as práticas e políticas educacionais adotadas no Brasil, descritas nos recortes históricos do capítulo primeiro deste trabalho.

Essa monografia não tem como objetivo analisar os diferentes períodos da educação, mas apontar um caminho pedagógico que construa o homem mais humano; mesmo que perifericamente podemos dizer que até o atual momento, a educação no Brasil viveu e vive uma constante busca, busca de caminhos, busca de soluções, busca de identidade. A busca é sinônimo de crise e a crise é condição para alçar novas conquistas ou, como diz Arendt, a natalidade.

Educar humanamente é deixar nascer caminhos que superem os limites impostos pelo social, pelo econômico e pelo político de maneira que a arte de educar trilhe um caminho constante de construção e desconstrução, assim como o humano é, idéia que ecoa na literatura de Guimarães Rosa ao conceituar o humano: "Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão" (ROSA, 1986, p.21).

O século XXI exige um movimento constante de construção de paradigmas e estes não podem incorporar regras estáticas como no passado próximo que engessou a educação pelos dualismos vividos – razão/imaginação, utilitarismo/lazer, conceptismo/cultismo,      ciências humanas/ciências exatas, Dionísio/Prometeu, Oriente/Ocidente, paranóia/metanóia, corpo/alma.

Em nosso país como em todos os cantos, o cartesianismo (séc. XVII - René Descartes), como o positivismo (séc XVIII - Augusto Comte) contribuíram com suas filosofias racionalistas, com a supervalorização do progresso material, da ordem e da disciplina desencadeando no século XIX a construção de um homem extremamente preocupado com a funcionalidade, com o utilitarismo, o burocrático e o tecnocrático. Essa filosofia educacional colocou o homem num pedestal seguro, porém negou-lhe a humanidade e o ser social que é.

A negação do que é o homem, de sua capacidade intuitiva, ontológica e imaginativa dá o ponto de partida de Freinet. Como vimos no capitulo dois, Célestin Freinet propõe como base fundamental da pedagogia a atividade experimentada pela criança dentro de seu espaço de vida. É pelos numerosos tateamentos que ela aprende a contar, somar, narrar, comparar, analisar, sintetizar...

A herança do século XVII é a de não perder tempo. Isto é, não perder dinheiro. O Brasil, da ordem e progresso, assume essa mesma filosofia e crava na história da educação alicerces doutrinários e moralistas. Prática evidenciada, por exemplo, na escola nos textos didáticos como afirma AVERBUCK referindo-se à arte e a poesia: “[...] numa organização selada pelo utilitarismo cada criança deve aprender a não perder seu tempo, nem tomar o de seus professores [...] a poesia e a arte, em geral, participam dessas áreas não-lucrativas onde se inserem as atividades prazerosas e lúdicas, excluídas do programa de vida de uma sociedade voltada para o ganho” (1988. p. 66).

Uma ação pedagógica humana não é a da desordem e da indisciplina. Em Freinet, a pedagogia humana é uma ação e reflexão que passa pela experiência, pela cooperação e pelo aprendizado. A atitude de ordenar, de separar, de engavetar e de rotular eternamente as idéias, afetos e sonhos, apenas para os manter com aparente segurança e domínio da realidade, não leva a nenhum crescimento porque impede ao ser humano sua natural abertura ao surgimento do novo. Freinet, ao propor a utilização do meio como eixo central do aprendizado, possibilitou que os alunos se sentissem motivados e agentes do processo. Isso fez com que eles criassem significados, desenvolvessem a crítica, a colaboração e valores sociais.

A educação no Brasil e em muitas partes do planeta, através da escola, nega o humano e reduz o seu potencial criativo como afirma Freinet (1998, p. 9) “[...] persegue os indivíduos obstinados em subir pelos caminhos que não considera normais”.

O pensamento racionalista que divide, subdivide, agrupa, reagrupa, fragmenta, ausculta, analisa, pesa, mede e avalia oferece uma educação em migalhas, “migalhas de pão espremidas e enroladas” (FREINET, 1998, p. 31) e na mesma obra citada, a pedagogia humana aqui defendida, Freinet, o pedagogo do bom senso, sobrenaturalmente profetiza:


“Migalhas de leituras, caídas de uma obra que ignoramos e que tem gosto de pão que ficou ressecando nas gavetas e nos sacos.
Migalhas de história, umas bolorentas, outras mal cozidas, e cujo amálgama é um problema insolúvel.
Migalhas de matemática e migalhas de ciências, como peças de máquinas, sinais e números que uma explosão tivesse dispersado e que nos esforçamos para montar, como um quebra-cabeça.
Migalhas de moral, como gavetas que mudamos de lugar, no complexo de uma vida de infinitas combinações.
Migalhas de arte [...]
Migalhas de aula, migalhas de horas de trabalho, migalhas de pátio de recreio [...]
Migalhas de homens!” (op. cit., p. 31)

Assim como a história da Educação no Brasil, as práticas pedagógicas nos diferentes tempos foram fragmentadas e reproduziram os interesses políticos dos governantes. Estes assumiram o controle do ato de educar, fizeram, pois da educação um instrumento de manipulação a partir dos interesses próprios em vistas dos próximos pleitos eleitorais, ou pior, em vista de interesses militares e antidemocráticos, como no período Governamental Militar vivido no Brasil. Frente a esses desmandos e a fragmentação da educação há que se perguntar:

“[...] se essa ‘ciência da escada’, compartimentos obscuros do saber, do sentir e do sonhar, degrau por degrau, com o mesmo ritmo e a mesma distância niveladora de toda individualidade, não seria uma falsa ciência e se não haveria caminhos mais rápidos e mais salutares, em que se avançasse por saltos e longas passadas. Se não haveria, segundo a imagem de Vitor Hugo, uma pedagogia das águias que não sobem pelas escadas” (ibidem, ibidem, grifo do autor).

Por longos séculos, a educação esteve engessada e engessou gerações que hoje mergulhadas num mundo globalizado não compreendem o que acontece, um mundo capaz de fazer que todos os saberes penetrem em todos os lugares e um mundo onde a lógica do consumo destrói a cultura. Na era da comunicação, a palavra permanece, mas esvaziada de qualquer idéia de formação, de abertura para o mundo e de cuidado da alma “[...] Já não se trata de transformar os homens em sujeitos autônomos, mas de satisfazer seus desejos imediatos, de diverti-los ao menor preço possível” (FINKIELKRAU, 1988 p. 128).

No livro O valor de educar, temos o que poderia encerrar essa reflexão sobre a herança histórica da educação no Brasil, herança de uma proposta que tira o protagonismo do homem, tornando-o um sujeito passivo frente ao mundo que o cerca e, sobretudo, fazendo da educação um instrumento de manipulação em favor de uma minoria mandante na sociedade em detrimento do coletivo. O autor SAVATER citando Russel e Foucault exprime o que significou uma educação centrada no dualismo medieval, no racionalismo e positivismo “Há mais de seis décadas Bertrand Russel advertiu que ‘tem sido costume da educação favorecer o Estado, a própria religião, o sexo masculino e os ricos’. E recentemente Michel de Foucault mostrou as engrenagens segundo as quais todo saber e também sua transmissão estabelecida mantêm uma vinculação com o poder, ou melhor, com os vários poderes difundidos que atuam normalizadora e disciplinarmente no campo social” (SAVATER, 1988, p. 64).

O século XXI desabrocha no contexto em que as coisas se destroem, a anarquia pura anda à solta pelo mundo, espalha-se a maré de tons sanguinolentos, e por toda parte a cerimônia da inocência se afoga, os melhores carecem de toda convicção, enquanto os piores estão cheios de apaixonante intensidade. Frente a esse quadro da humanidade perguntamos: o que fazer?

Recorrendo ao grande educador brasileiro Paulo Freire (1996 p. 126-127), temos: “Se a educação não é a chave das transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia dominante. O que quero dizer é que a educação nem é uma força imbatível a serviço da transformação da sociedade, porque assim eu queira, nem tampouco é a perpetuação do ‘status quo’ porque o dominante decrete. O educador e a educadora críticos não podem pensar que, a partir do curso que coordenam ou do seminário que lideram, podem transformar o país. Mas podem demonstrar que é possível mudar. E isto reforça nele ou nela a importância de sua tarefa político-pedagógico”.

Podemos afirmar então, que a tarefa político-pedagógico do educador/educadora de Freire é em Freinet (1989, p. 280) a capacidade “para continuar na escuta misteriosa da vida” ou seja, respeitar o intuitivo do aluno. “Este sentido intuitivo não tem senão um inconveniente para os demagogos, o de não ser mensurável com o padrão material, indigente e falso da escola”.


Esse sentido intuitivo que nos conecta à escuta misteriosa da vida é também o que nos impulsiona a acreditar numa proposta educativa humana que desperte o ser humano que  todos temos dentro de nós. Trata-se, afinal, de aprender a viver como seres humanos, de aprender a amar e ser livres, de despertar uma nova consciência encaminhada para a transformação de uma sociedade humana e racional, na qual os homens sejam capazes de determinar livremente qual é o sentido de suas vidas, como querem viver.

A superação de uma educação produtivista e utilitarista, do homem maquinizado encontra uma ruptura na percepção globalizante de Freinet (1985 p.104)  sobre a educação e a totalidade do ser humano, quando afirma “ [...] As crianças têm necessidade de pão, do pão do corpo e do pão do espírito, mas necessitam ainda mais do seu olhar, da sua voz, do seu pensamento e da sua  promessa. Precisam sentir que encontraram, em você e na sua escola, a ressonância de falar com alguém que as escute, de escrever a alguém que as leia ou as compreenda, de produzir alguma cosia de útil e belo que é a expressão de tudo o que trazem nelas de generoso e de superior”. Com isso a pedagogia freinetiana transformou as dificuldades em desafios e criou um novo cenário que potencializou os alunos para a auto-aprendizagem. O diferencial de Freinet foi valorizar a função do meio de forma a abrir os canais de comunicação através da socialização dos produtos da aprendizagem transformando o aluno em comunicador permitindo, assim ao aluno, a descoberta da projeção social de sua palavra quando comunicada.

A proposta de uma pedagogia humanista é entre tantas visões uma prática social de educar e é por ela que estamos caminhando. Há, pois nessa perspectiva, novos relacionamentos ou modos mais consistentes de nos relacionarmos com as pessoas e com o mundo. A pedagogia de Freinet representa um modo peculiar de ver e de realizar a prática educativa na escola, contraposta à “pedagogia tradicional”. Diferentes visões decorrem da leitura dessa teoria, numa perspectiva liberal, a pedagogia de Freinet, enfatiza o desenvolvimento da liberdade e da criatividade pessoal. Na perspectiva marxista reforçaria a dimensão do trabalho como princípio educativo. Nessa monografia o enfoque é o caráter revolucionário da proposta pedagógica de Freinet, que chamamos de Pedagogia Humana, no sentido já descrito de uma educação que interfira na vida pessoal e, em conseqüência, no espaço de vida desse aluno.

Uma educação humana em Freinet é desenvolver plenamente no aluno o potencial que possui, aprimorando suas características, tendo como concepção o bem estar e a dignidade do aluno como ser humano. A trajetória de vida de Célestin Freinet, como já vimos nos capítulos anteriores, testemunha essa dimensão: seu envolvimento político e as perseguições sofridas desencadearam, por exemplo, a criação de cooperativas por onde ensinava a solidariedade dentro da escola. Experiência coroada como uma educação democrática, onde todos tinham voz para opinar, construía-se assim o significado de justiça e, acima de tudo, ensinava os alunos a serem mais humanos. Com essa postura ganha crédito e amplia seus horizontes, através de uma educação preocupada em aperfeiçoar e desenvolver as potencialidades de cada um, como um ser livre e crítico apropriando-se da sua vida humana por completo, assimilando a cultura em que vive e a cidadania.

Para Freinet, educar humanamente é, sobretudo, aprimorar-se da cultura e da cidadania, dimensões norteadas na Lei de Diretrizes de Base da Educação Nacional no Título I, Artigo 1° e parágrafos 1° e 2°:

Art. 1°.A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.
§ 1º. Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.
§ 2º. A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social.

O século nascente exige, pois, que a prática educativa seja humana, democrática, pluralista, aberta e crítica e, a exemplo das técnicas aplicadas por Freinet, descritas no capítulo terceiro dessa monografia, seja sensível e atenta às diferenças e necessidades culturais e até mesmo individuais do aluno. A prática adotada por Freinet propõe a libertação dos alunos, libertação da ignorância, do preconceito, do capricho, da alienação e da falsa consciência de sua pertença ao mundo. Na proposta freinetiana, a visão humana de educar, aqui dissertada, leva em conta a autenticidade pessoal, a auto-realização e o ambiente democrático que é construído no espaço escolar e no espaço em que vive o aluno.

Uma proposta humana de educar conta, sobretudo, com o respeito à natureza interior do aluno, assim fez Freinet e criou meios para que tal natureza desabrochasse de forma saudável e plena. Em sua natureza interior, o aluno é livre e pensante, por isso a educação deve respeito ao que é o aluno e não obrigá-lo a aceitar verdades alheias, mas sim dar a ele a opção de escolha, dando-lhe oportunidades de criar sua própria identidade e traçar os seus projetos de vida.

A dimensão política da pedagogia de Freinet engendra para o século XXI o desafio de trabalhar o cotidiano do aluno, para isso o educador deve ter uma visão emancipada de todos os problemas sócio-culturais, transmitindo e criando oportunidades para que os alunos estejam capacitados criticamente, tendo consciência e autocontrole de suas próprias vidas, assim poderiam interferir no espaço social em que vivem. Nesse contexto, a escola passa a ser um espaço democrático com o objetivo de ensinar os alunos a respeito do que é viver em uma sociedade justa e humana independente da raça, classe, sexo ou idade. Para tanto, da prática freinetiana de educar concluímos que a escola precisa ser um espaço de confiança, de diálogo, de respeito, de tolerância, de zelo, de liberdade, de compromisso e responsabilidade.

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