CAPÍTULO IV / PEDAGOGIA HUMANISTA
O capítulo que iniciamos e os que o antedeceram
despontam como uma possibilidade de orientar posicionamentos que visam quebrar
paradigmas do pensamento tradicional do que seja o ato de educar.
Em Célestin Freinet, teórico tomado como base
de uma proposta pedagógica humana, o ser humano aprende fazendo e faz
aprendendo, no espaço em que vive, através das técnicas descritas no capítulo
terceiro. Tal entendimento acha-se em consonância com a compreensão do homem
como sujeito de seu aprender e isso se dá pelo tato experimental do que aprende
com o que quer aprender e, sobretudo, que o aprender e experimentar se
processam de forma cooperativa, conjunta.
Tais dimensões balizam condutas educacionais e filosofias da educação
como geradoras de espaços de reflexões e práticas, nos quais os alunos de
qualquer nível de escolarização, possam abrigar essas possibilidades de ser com
os outros, junto às coisas e consigo mesmo.
Esse capítulo reflete a possibilidade de uma
proposta pedagógica humana para o século XXI e tem na premissa apresentada por
Hannah Arendt, no seu livro Entre o
passado e o futuro, publicado em 1954, “[...]a essência da educação é a
natalidade, o fato de que seres humanos nascem para o mundo” (2000, p.223) o
principio básico para entender o que nessa monografia se diz por proposta
pedagógica humana para o século XXI. Entenda-se como proposta pedagógica humana
a educação como prática de inserção das pessoas num dado contexto cultural e
histórico.
A natalidade a que se refere Arendt é a que
brota do conflito vivido em sociedade, uma vez que esta é uma colcha de retalho
de diferentes culturas, e é onde se dá o existir humano. A concepção de uma pedagogia
humana, aqui trabalhada, caracteriza-se como a possibilidade de, pela educação,
fazer o homem parte do todo, que prima como um ser político e para tal requer
uma ética, princípios e valores que norteiem sua reflexão e ação. Essa
perspectiva, valorativa de ação e reflexão questiona sem sombra de dúvidas, as
práticas e políticas educacionais adotadas no Brasil, descritas nos recortes
históricos do capítulo primeiro deste trabalho.
Essa monografia não tem como objetivo analisar
os diferentes períodos da educação, mas apontar um caminho pedagógico que
construa o homem mais humano; mesmo que perifericamente podemos dizer que até o
atual momento, a educação no Brasil viveu e vive uma constante busca, busca de
caminhos, busca de soluções, busca de identidade. A busca é sinônimo de crise e
a crise é condição para alçar novas conquistas ou, como diz Arendt, a
natalidade.
Educar humanamente é deixar nascer caminhos que superem os
limites impostos pelo social, pelo econômico e pelo político de maneira que a arte
de educar trilhe um caminho constante de construção e desconstrução, assim como
o humano é, idéia que ecoa na literatura de Guimarães Rosa ao conceituar o
humano: "Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as
pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão
sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.
Isso que me alegra, montão" (ROSA, 1986, p.21).
O século XXI exige um movimento constante de
construção de paradigmas e estes não podem incorporar regras estáticas como no
passado próximo que engessou a educação pelos dualismos vividos –
razão/imaginação, utilitarismo/lazer, conceptismo/cultismo, ciências humanas/ciências exatas,
Dionísio/Prometeu, Oriente/Ocidente, paranóia/metanóia, corpo/alma.
Em nosso país como em todos os cantos, o
cartesianismo (séc. XVII - René Descartes), como o positivismo (séc XVIII -
Augusto Comte) contribuíram com suas filosofias racionalistas, com a
supervalorização do progresso material, da ordem e da disciplina desencadeando
no século XIX a construção de um homem extremamente preocupado com a
funcionalidade, com o utilitarismo, o burocrático e o tecnocrático. Essa
filosofia educacional colocou o homem num pedestal seguro, porém negou-lhe a
humanidade e o ser social que é.
A negação do que é o homem, de sua capacidade
intuitiva, ontológica e imaginativa dá o ponto de partida de Freinet. Como
vimos no capitulo dois, Célestin Freinet propõe como base fundamental da
pedagogia a atividade experimentada pela criança dentro de seu espaço de vida.
É pelos numerosos tateamentos que ela aprende a contar, somar, narrar,
comparar, analisar, sintetizar...
A herança do século XVII é a de não perder
tempo. Isto é, não perder dinheiro. O Brasil, da ordem e progresso, assume essa
mesma filosofia e crava na história da educação alicerces doutrinários e
moralistas. Prática evidenciada, por exemplo, na escola nos textos didáticos
como afirma AVERBUCK referindo-se à arte e a poesia: “[...] numa organização
selada pelo utilitarismo cada criança deve aprender a não perder seu tempo, nem
tomar o de seus professores [...] a poesia e a arte, em geral, participam
dessas áreas não-lucrativas onde se inserem as atividades prazerosas e lúdicas,
excluídas do programa de vida de uma sociedade voltada para o ganho” (1988. p. 66).
Uma ação pedagógica humana não é a da desordem
e da indisciplina. Em Freinet, a pedagogia humana é uma ação e reflexão que
passa pela experiência, pela cooperação e pelo aprendizado. A atitude de
ordenar, de separar, de engavetar e de rotular eternamente as idéias, afetos e
sonhos, apenas para os manter com aparente segurança e domínio da realidade,
não leva a nenhum crescimento porque impede ao ser humano sua natural abertura
ao surgimento do novo. Freinet, ao propor a utilização do meio como eixo
central do aprendizado, possibilitou que os alunos se sentissem motivados e
agentes do processo. Isso fez com que eles criassem significados,
desenvolvessem a crítica, a colaboração e valores sociais.
A educação no Brasil e em muitas partes do planeta, através da escola,
nega o humano e reduz o seu potencial criativo como afirma Freinet (1998, p. 9)
“[...] persegue os indivíduos obstinados em subir pelos caminhos que não
considera normais”.
O pensamento racionalista que divide,
subdivide, agrupa, reagrupa, fragmenta, ausculta, analisa, pesa, mede e avalia
oferece uma educação em migalhas, “migalhas de pão espremidas e enroladas”
(FREINET, 1998, p. 31) e na mesma obra citada, a pedagogia humana aqui defendida,
Freinet, o pedagogo do bom senso, sobrenaturalmente profetiza:
“Migalhas de leituras, caídas de uma obra
que ignoramos e que tem gosto de pão que ficou ressecando nas gavetas e nos
sacos.
Migalhas de história, umas bolorentas,
outras mal cozidas, e cujo amálgama é um problema insolúvel.
Migalhas de matemática e migalhas de
ciências, como peças de máquinas, sinais e números que uma explosão tivesse
dispersado e que nos esforçamos para montar, como um quebra-cabeça.
Migalhas de moral, como gavetas que
mudamos de lugar, no complexo de uma vida de infinitas combinações.
Migalhas de arte [...]
Migalhas de aula, migalhas de horas de
trabalho, migalhas de pátio de recreio [...]
Migalhas de homens!” (op. cit., p. 31)
Assim como a história da Educação no Brasil, as
práticas pedagógicas nos diferentes tempos foram fragmentadas e reproduziram os
interesses políticos dos governantes. Estes assumiram o controle do ato de
educar, fizeram, pois da educação um instrumento de manipulação a partir dos
interesses próprios em vistas dos próximos pleitos eleitorais, ou pior, em
vista de interesses militares e antidemocráticos, como no período Governamental
Militar vivido no Brasil. Frente a esses desmandos e a fragmentação da educação
há que se perguntar:
“[...] se essa ‘ciência da escada’, compartimentos obscuros do
saber, do sentir e do sonhar, degrau por degrau, com o mesmo ritmo e a mesma
distância niveladora de toda individualidade, não seria uma falsa ciência e
se não haveria caminhos mais rápidos e mais salutares, em que se avançasse por
saltos e longas passadas. Se não haveria, segundo a imagem de Vitor Hugo, uma
pedagogia das águias que não sobem pelas escadas” (ibidem, ibidem, grifo do autor).
Por longos séculos, a educação esteve engessada
e engessou gerações que hoje mergulhadas num mundo globalizado não compreendem
o que acontece, um mundo capaz de fazer que todos os saberes penetrem em todos
os lugares e um mundo onde a lógica do consumo destrói a cultura. Na era da
comunicação, a palavra permanece, mas esvaziada de qualquer idéia de formação,
de abertura para o mundo e de cuidado da alma “[...] Já não se trata de
transformar os homens em sujeitos autônomos, mas de satisfazer seus desejos
imediatos, de diverti-los ao menor preço possível” (FINKIELKRAU, 1988 p. 128).
No livro O
valor de educar, temos o que poderia encerrar essa reflexão sobre a herança
histórica da educação no Brasil, herança de uma proposta que tira o
protagonismo do homem, tornando-o um sujeito passivo frente ao mundo que o cerca
e, sobretudo, fazendo da educação um instrumento de manipulação em favor de uma
minoria mandante na sociedade em detrimento do coletivo. O autor SAVATER
citando Russel e Foucault exprime o que significou uma educação centrada no
dualismo medieval, no racionalismo e positivismo “Há mais de seis décadas
Bertrand Russel advertiu que ‘tem sido costume da educação favorecer o Estado,
a própria religião, o sexo masculino e os ricos’. E recentemente Michel de
Foucault mostrou as engrenagens segundo as quais todo saber e também sua
transmissão estabelecida mantêm uma vinculação com o poder, ou melhor, com os
vários poderes difundidos que atuam normalizadora e disciplinarmente no campo
social” (SAVATER, 1988, p. 64).
O século XXI desabrocha no contexto em que as coisas
se destroem, a anarquia pura anda à solta pelo mundo, espalha-se a maré de tons
sanguinolentos, e por toda parte a cerimônia da inocência se afoga, os melhores
carecem de toda convicção, enquanto os piores estão cheios de apaixonante
intensidade. Frente a esse quadro da humanidade perguntamos: o que fazer?
Recorrendo ao grande educador brasileiro Paulo
Freire (1996 p. 126-127), temos: “Se a educação não é a chave das
transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da ideologia
dominante. O que quero dizer é que a educação nem é uma força imbatível a
serviço da transformação da sociedade, porque assim eu queira, nem tampouco é a
perpetuação do ‘status quo’ porque o dominante decrete. O educador e a
educadora críticos não podem pensar que, a partir do curso que coordenam ou do
seminário que lideram, podem transformar o país. Mas podem demonstrar que é
possível mudar. E isto reforça nele ou nela a importância de sua tarefa
político-pedagógico”.
Podemos afirmar então, que a tarefa político-pedagógico
do educador/educadora de Freire é em Freinet (1989, p. 280) a capacidade “para
continuar na escuta misteriosa da vida” ou seja, respeitar o intuitivo do
aluno. “Este sentido intuitivo não tem senão um inconveniente para os
demagogos, o de não ser mensurável com o padrão material, indigente e falso da
escola”.
Esse sentido intuitivo que nos conecta à escuta
misteriosa da vida é também o que nos impulsiona a acreditar numa proposta
educativa humana que desperte o ser humano que
todos temos dentro de nós. Trata-se, afinal, de aprender a viver como
seres humanos, de aprender a amar e ser livres, de despertar uma nova
consciência encaminhada para a transformação de uma sociedade humana e
racional, na qual os homens sejam capazes de determinar livremente qual é o
sentido de suas vidas, como querem viver.
A superação de uma educação produtivista e
utilitarista, do homem maquinizado encontra uma ruptura na percepção
globalizante de Freinet (1985 p.104) sobre a educação e a totalidade do ser humano,
quando afirma “ [...] As crianças têm necessidade de pão, do pão do corpo e do
pão do espírito, mas necessitam ainda mais do seu olhar, da sua voz, do seu
pensamento e da sua promessa. Precisam
sentir que encontraram, em você e na sua escola, a ressonância de falar com
alguém que as escute, de escrever a alguém que as leia ou as compreenda, de
produzir alguma cosia de útil e belo que é a expressão de tudo o que trazem
nelas de generoso e de superior”. Com isso a pedagogia freinetiana transformou
as dificuldades em desafios e criou um novo cenário que potencializou os alunos
para a auto-aprendizagem. O diferencial de Freinet foi valorizar a função do
meio de forma a abrir os canais de comunicação através da socialização dos
produtos da aprendizagem transformando o aluno em comunicador permitindo, assim
ao aluno, a descoberta da projeção social de sua palavra quando comunicada.
A proposta de uma pedagogia humanista é entre
tantas visões uma prática social de educar e é por ela que estamos caminhando.
Há, pois nessa perspectiva, novos relacionamentos ou modos mais consistentes de
nos relacionarmos com as pessoas e com o mundo. A pedagogia de Freinet
representa um modo peculiar de ver e de realizar a prática educativa na escola,
contraposta à “pedagogia tradicional”. Diferentes visões decorrem da leitura
dessa teoria, numa perspectiva liberal, a pedagogia de Freinet, enfatiza o
desenvolvimento da liberdade e da criatividade pessoal. Na perspectiva marxista
reforçaria a dimensão do trabalho como princípio educativo. Nessa monografia o
enfoque é o caráter revolucionário da proposta pedagógica de Freinet, que
chamamos de Pedagogia Humana, no sentido já descrito de uma educação que
interfira na vida pessoal e, em conseqüência, no espaço de vida desse aluno.
Uma educação humana em Freinet é desenvolver
plenamente no aluno o potencial que possui, aprimorando suas características,
tendo como concepção o bem estar e a dignidade do aluno como ser humano. A
trajetória de vida de Célestin Freinet, como já vimos nos capítulos anteriores,
testemunha essa dimensão: seu envolvimento político e as perseguições sofridas
desencadearam, por exemplo, a criação de cooperativas por onde ensinava a
solidariedade dentro da escola. Experiência coroada como uma educação
democrática, onde todos tinham voz para opinar, construía-se assim o
significado de justiça e, acima de tudo, ensinava os alunos a serem mais
humanos. Com essa postura ganha crédito e amplia seus horizontes, através de
uma educação preocupada em aperfeiçoar e desenvolver as potencialidades de cada
um, como um ser livre e crítico apropriando-se da sua vida humana por completo,
assimilando a cultura em que vive e a cidadania.
Para Freinet, educar humanamente é, sobretudo,
aprimorar-se da cultura e da cidadania, dimensões norteadas na Lei de
Diretrizes de Base da Educação Nacional no Título I, Artigo 1° e parágrafos 1°
e 2°:
Art. 1°.A educação abrange
os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos
sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.
§ 1º. Esta Lei disciplina a
educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em
instituições próprias.
§ 2º. A educação escolar deverá
vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social.
O século nascente exige, pois, que a prática
educativa seja humana, democrática, pluralista, aberta e crítica e, a exemplo
das técnicas aplicadas por Freinet, descritas no capítulo terceiro dessa
monografia, seja sensível e atenta às diferenças e necessidades culturais e até
mesmo individuais do aluno. A prática adotada por Freinet propõe a libertação
dos alunos, libertação da ignorância, do preconceito, do capricho, da alienação
e da falsa consciência de sua pertença ao mundo. Na proposta freinetiana, a
visão humana de educar, aqui dissertada, leva em conta a autenticidade pessoal,
a auto-realização e o ambiente democrático que é construído no espaço escolar e
no espaço em que vive o aluno.
Uma proposta humana de educar conta, sobretudo,
com o respeito à natureza interior do aluno, assim fez Freinet e criou meios
para que tal natureza desabrochasse de forma saudável e plena. Em sua natureza
interior, o aluno é livre e pensante, por isso a educação deve respeito ao que
é o aluno e não obrigá-lo a aceitar verdades alheias, mas sim dar a ele a opção
de escolha, dando-lhe oportunidades de criar sua própria identidade e traçar os
seus projetos de vida.
A dimensão política da pedagogia de Freinet engendra
para o século XXI o desafio de trabalhar o cotidiano do aluno, para isso o
educador deve ter uma visão emancipada de todos os problemas sócio-culturais,
transmitindo e criando oportunidades para que os alunos estejam capacitados
criticamente, tendo consciência e autocontrole de suas próprias vidas, assim
poderiam interferir no espaço social em que vivem. Nesse contexto, a escola
passa a ser um espaço democrático com o objetivo de ensinar os alunos a
respeito do que é viver em uma sociedade justa e humana independente da raça,
classe, sexo ou idade. Para tanto, da prática freinetiana de educar concluímos
que a escola precisa ser um espaço de confiança, de diálogo, de respeito, de
tolerância, de zelo, de liberdade, de compromisso e responsabilidade.